sexta-feira, 18 abril, 2025
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Aborto e Obrigações Parentais: Uma Perspetiva Libertária

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Nota: Este artigo foi possível graças a uma pessoa fantástica, que, após um debate de duas horas, conseguiu mudar a minha perspetiva em relação a este tópico para uma mais consistente e menos contraditória.


O aborto é um dos temas mais controversos de sempre. O conflito entre o direito à vida do embrião/feto e o direito à autonomia da mãe parece um dilema impossível de resolver

O propósito deste artigo é oferecer uma perspetiva libertária consistente sobre este assunto tão polémico.

Antes de mais, é preciso esclarecer algo importante e que deveria ser fácil de entender. Ao longo de todo o artigo iremos considerar o embrião/feto como um indivíduo, isto é, uma pessoa humana com os mesmos direitos individuais que qualquer criança, adolescente ou adulto.

O desenvolvimento e crescimento das pessoas começa na conceção. Aliás, é por isso que se usa essa palavra. Porque no momento da fecundação é concebida uma nova pessoa que é biológica, anatómica e fisicamente distinta da sua mãe.

A biologia básica revela-nos que o ser humano tem uma etapa de vida intrauterina e uma etapa de vida extrauterina, e que não existem diferenças relevantes entre um embrião ou um adulto em termos de estatuto enquanto ser humano.

É um facto que, nos nossos primeiros meses de vida, estamos particularmente dependentes do corpo da nossa mãe para sobrevivermos. E existem diferenças entre um embrião, um feto e um bebé, tal como existem diferenças entre uma criança e um adulto. Mas todos estes nomes denotam etapas de vida de uma pessoa.

Uma pessoa é todo e qualquer ser autónomo pertencente à espécie humana, isto é, à espécie Homo sapiens. Repare-se que importa a questão da autonomia. Com autonomia não queremos dizer necessariamente independência ou emancipação, mas sim o facto de se tratar de um organismo distinto com a sua própria identidade, em vez de uma mera parte de outro organismo.

A diferença entre um embrião e uma célula humana como um óvulo ou um espermatozoide é simples. Aquilo que separa um embrião de um ser humano adulto é um mero processo de crescimento e desenvolvimento. Ao contrário de um embrião, um espermatozoide isolado não se irá desenvolver até se tornar numa pessoa adulta. Equiparar os dois é cometer uma falácia da composição. O espermatozoide e o óvulo são partes de um organismo autónomo. Um embrião é ele mesmo um organismo autónomo completo, com o seu próprio ADN, metabolismo e ações separadas dos da sua mãe.

Por esta mesma razão, qualquer argumento que postule que o embrião pertence ao corpo da sua mãe é absurdo. É como dizer que um condutor faz parte da estrutura do carro que conduz.

Aquilo que permite distinguir um embrião ou feto de um adulto resume-se essencialmente a quatro parâmetros: tamanho, nível de desenvolvimento, ambiente e grau de dependência. Mas essas distinções são irrelevantes para a classificação do ser enquanto pessoa, pelas razões atrás mencionadas.

Um embrião não é uma pessoa potencial. É uma pessoa, e um adulto potencial.

Logo, quaisquer argumentos relativos ao aborto que neguem o estatuto do embrião/feto enquanto pessoa podem então ser imediatamente descartados como errados e representativos de ignorância ou desonestidade intelectual maliciosa.

Agora que já vimos que estamos a falar de uma pessoa, podemos proceder com a nossa análise ética.

Não perderei tempo a elaborar a justificação ética do libertarianismo neste artigo, pois esse não é o nosso propósito. Mas, segundo a perspetiva libertária, enquanto pessoa, o feto tem os mesmos direitos individuais que qualquer outro ser humano inocente: os direitos à vida, liberdade e propriedade privada.

Então como conseguimos aplicar estes direitos à questão do aborto? Creio que um bom ponto de partida são as obrigações parentais que existem no libertarianismo.

Como sabemos, os seres humanos não são capazes de tomar decisões autónomas e independentes em todas as etapas da sua vida. Nascemos completamente vulneráveis, indefesos e dependentes de terceiros para nos sustentarem e cuidarem de nós durante os primeiros anos da nossa vida.

Rothbard, o célebre pensador e autor libertário, diz que não existem quaisquer obrigações parentais que devem ser legalmente forçadas a fazer cumprir, uma vez que não há direitos positivos. No entanto, sempre que há uma relação sexual, ambas as pessoas envolvidas têm consciência de que existe sempre um risco de gravidez, por muito baixo que ele possa ser, e pelo menos uma dessas pessoas (nos casos de violação, apenas uma delas) deu o seu consentimento para participar nessa relação sexual. Os pais são, portanto, sempre responsáveis por criar seres vivos indefesos, vulneráveis e inocentes que não sobrevivem sem auxílio externo. E quando um bebé nasce, o seu abandono resultará sempre na sua morte caso ninguém se ofereça para cuidar dele.

Existem cenários onde um “abandono” não viola de facto os direitos de ninguém. Imaginemos um cenário hipotético de um viajante a transportar comida e bebida que, ao atravessar um deserto, encontra um homem a morrer de sede e de fome. Por muito cruel e moralmente condenável que fosse ignorar as necessidades do homem do deserto, o viajante não tem o dever legal de oferecer comida ou bebida ao homem se ele não quiser, e se o homem tentasse roubar alimentos à força, o viajante seria uma vítima de agressão e teria o direito de se defender contra o roubo. Nesta situação, o viajante está no seu pleno direito de “abandonar” o homem e seguir em frente, deixando-o à mercê dos elementos.

Contudo, existem duas diferenças cruciais entre este exemplo e o caso de abandonar um recém-nascido ou uma criança. A primeira diferença é que um bebé é física, moral e mentalmente incapaz de cometer qualquer ato de agressão intencional contra os seus pais. Todas as crianças extremamente novas são desprovidas de culpa em qualquer circunstância, visto que não têm a capacidade mental para compreender as consequências das suas ações. A segunda diferença crucial é que, no caso do deserto, o viajante não é responsável pelas circunstâncias infelizes em que o homem do deserto se encontra. Ele não o raptou e depois largou no meio do deserto, nem criou o ambiente hostil do mesmo. Por outro lado, os pais são responsáveis por trazer ao mundo um bebé completamente indefeso e dependente, ou seja, são de certo modo responsáveis por colocar um indivíduo em certas circunstâncias sem o seu consentimento.

Deste modo, é legítimo afirmar que os pais têm a obrigação de assegurar a sobrevivência dos seus filhos até que eles se emancipem ou atinjam a maturidade. Podemos afirmar que quando um adulto é responsável por gerar voluntariamente uma pessoa dependente e vulnerável, ele aceita implicitamente uma responsabilidade vinculativa para com essa pessoa. É como um contrato especial que provém da relação natural entre os filhos e os pais que consentiram (de maneira explícita ou implícita) em tê-los.

Há quem diga que dar o consentimento para fazer sexo não é dar o consentimento para engravidar. Isto é um dos argumentos mais absurdos que existem. É equivalente a dizer que consentir em saltar da janela não é consentir em cair no chão, ou que consentir em apostar dinheiro não é consentir em perdê-lo, ou até que consentir em jogar roleta russa não é consentir em morrer. A realidade não cede à tentativa de algumas pessoas de reescrevê-la, e ignorar os riscos e consequências das ações não desresponsabiliza um ator que decidiu colocá-las em prática. Em todos os cenários descritos neste parágrafo, as ações envolvem necessariamente riscos, e praticá-las equivale a aceitar implicitamente esses mesmos riscos, bem como as consequências e responsabilidades que deles advêm.

Existem certas nuances importantes. Por exemplo, no caso de uma violação em que a mãe queira prosseguir com a gravidez, é legítimo afirmar que apenas o violador deve ser forçado a sustentar o filho depois do nascimento, pois a pessoa violada não consentiu em ter relações sexuais.

Outra nuance é até que idade é que os pais devem ser forçados a assegurar a sobrevivência dos seus filhos. Até aos18 anos? Até eles arranjarem emprego? Não existe um limite numérico concreto ou uma data específica a partir da qual podemos afirmar com certeza absoluta que uma criança já atingiu a sua maturidade, independência ou emancipação. E certamente os pais não deverão ser forçados a cuidar dos seus filhos durante toda a sua vida. Contudo, tal como nos cenários de idade para dar consentimento sexual, existem situações em que a resposta é óbvia. Por exemplo, um bebé de três anos é claramente imaturo, mas um homem de vinte anos decerto já terá atingido a sua independência (exceto em casos raros como défices cognitivos de maior gravidade).

Não devemos abster-nos de seguir princípios objetivos em situações onde não há sombra de dúvida apenas por haver outras situações mais incertas. A existência de cenários incertos ou difíceis jamais será uma justificação para abandonarmos princípios éticos básicos.

Mas como é que estas obrigações parentais se aplicam a embriões e fetos?

Da mesma maneira que os pais têm o dever de cuidar dos seus filhos até eles se tornarem independentes depois de eles nascerem, essa responsabilidade também existe antes do nascimento. Quando dois adultos participam em relações sexuais voluntariamente, eles estão implicitamente a aceitar o risco de uma possível gravidez, mesmo que tenham usado métodos contracetivos.

Logo, é como se estivessem a aceitar um contrato unilateral entre eles e o seu filho. Segundo esse contrato, a mãe aceita implicitamente que outra pessoa ocupe e use o seu corpo até ao nascimento.

Mas há um aspeto importante a abordar: a agressão envolvida numa gravidez. Segundo o libertarianismo, a agressão corresponde a todo e qualquer uso de força física contra uma pessoa ou contra a sua propriedade, alterando a integridade física do seu corpo ou de outros bens que lhe pertençam sem o seu consentimento.

E a vítima tem evidentemente o direito de se defender usando força física contra todo e qualquer tipo de agressão, desde que respeite o princípio da proporcionalidade.

Contudo, a agressão nem sempre é intencional. Às vezes o agressor age de forma inadvertida ou inconsciente, como por exemplo um condutor que atropela um peão sem querer.

Outro cenário hipotético, que pode parecer absurdo, mas que é importante enquanto analogia para a nossa argumentação, é o seguinte: imaginemos que um sonâmbulo, a dormir e, portanto, sem consciência das suas ações, amarra e sufoca uma pessoa inocente sem a matar. Certamente a vítima teria todo o direito de se defender contra o sonâmbulo, usando até mesmo força letal em último recurso caso fosse necessário para proteger a sua integridade física, apesar de o sonâmbulo não ter culpa das suas ações.

Mas em que medida é que este cenário difere de um feto que, sem intenção, provoca alterações físicas à integridade do corpo da sua mãe durante a gravidez? Tecnicamente, o feto não estará a agredir a mãe, tendo em conta a nossa definição de agressão? E a mãe não terá portanto o direito de se defender contra esta agressão usando até mesmo força física letal (aborto) em último recurso?

Não, pois há uma diferença importante. Como já referimos atrás, se a mãe tiver participado voluntariamente em relações sexuais, ela aceitou implicitamente o risco de engravidar e, como tal, aceitou uma responsabilidade vinculativa para com o feto. Este contrato especial implica que a mãe aceitou implicitamente que o feto ocupasse o corpo dela, e aceitou também toda e qualquer alteração física expectável provocada pela gravidez. É como um lutador de boxe que aceita implicitamente, até certo ponto, que usem força física contra ele durante uma luta.

Então quais são os casos em que abortar constituiria legítima defesa por parte da mãe contra a agressão não intencional do feto?

A resposta é: qualquer situação de agressão fetal que a mãe não tenha consentido de forma explícita ou implícita.

O exemplo mais óbvio é o dos casos de violação. A mãe não aceitou nenhum contrato implícito com o feto nestes casos, visto que não deu o seu consentimento para a relação sexual. Deste modo, não aceitou que outra pessoa ocupasse o seu corpo e provocasse alterações à sua integridade física, pelo que tem o direito de usar força proporcional para se defender contra essa intrusão e agressão.

Outra situação corresponde a uma gravidez que coloque em risco a vida ou a saúde da mãe para além do que seria razoável esperar de uma gravidez normal. Um contrato implica sempre um princípio de antecipabilidade, isto é, não inclui nas suas obrigações quaisquer riscos ou cenários que não possam ser razoavelmente esperados tendo em conta as cláusulas aceites. Deste modo, consentir em ter uma relação sexual implica tacitamente consentir em engravidar, mas não em morrer ou sofrer danos corporais extremos devido à gravidez.

Por fim, existe ainda outra situação em que não pode existir uma relação contratual vinculativa entre a mãe e o feto: quando a mãe é menor de idade. Nestes casos, como a mãe não tem capacidade de consentir, a decisão sobre a gravidez caberá aos pais ou ao guardião legal da mãe, que agem conforme o que pensam ser melhor para ela.

Um último aspeto importante a analisar é o do princípio da proporcionalidade. Como vimos, nos casos em que as alterações físicas provocadas pelo feto podem ser classificadas como agressão, a mãe tem o direito de se defender contra essa agressão e, em último recurso, usar força letal (aborto) caso seja necessário.

Contudo, tal como um dono de uma loja não pode defender-se de um simples furto ao usar um lança-chamas contra o ladrão, a mãe também não pode usar violência desnecessária para defender a sua integridade física.

Isto significa, por um lado, que o aborto é inadmissível em situações de viabilidade, nas quais o bebé consegue sobreviver fora do útero da mãe. Por outro lado, também significa que os únicos processos abortivos aceitáveis seriam aqueles que meramente expulsam o feto do corpo da mãe, e em que a morte seria inadvertidamente uma consequência de o feto não ser viável e não conseguir sobreviver fora do útero materno.

Em resumo, podemos dizer que um embrião ou feto é uma pessoa plena dotada dos mesmos direitos individuais que qualquer outro indivíduo possui.

Existem obrigações parentais legítimas resultantes das ações voluntárias de adultos que culminem na criação de uma pessoa vulnerável e dependente, que não consegue sobreviver sem suporte externo. Os pais devem cuidar dos seus filhos desde a sua conceção até à sua independência.

As ações inconscientes do feto sobre o corpo da mãe podem ser consideradas como uma forma não intencional de agressão, mas apenas se a mãe não tiver dado o seu consentimento de forma explícita ou implícita. Nestas situações, a mãe tem o direito a defender-se contra essa agressão, desde que respeite o princípio da proporcionalidade.

Para terminar, sempre que a mãe não tem o direito de usar força contra o embrião ou feto, qualquer aborto pode ser chamado por aquilo que realmente é: Homicídio.

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