Traduzido/adaptado para português [PT] por Manuel Morgado a partir do livro “How We Know: Epistemology on an Objectivist Foundation”, por Harry Binswanger, págs. 23-28
Conhecimento significa conhecimento de factos da realidade, isto é, de aspectos da existência. A base e ponto de partida de todo o conhecimento é o facto de que existe um Mundo a ser conhecido. Ou, na declaração indelével de Rand, “A existência existe.” [Atlas Shrugged, 1015]
A existência das coisas é percepcionada directamente: nós vemos coisas, ouvimos coisas, palpamo-las, cheiramo-las, e sentimos o seu sabor. O facto de que existe algo é-nos perceptualmente fornecido; não é aprendido através da inferência a partir de outros factos (que teriam eles mesmos de existir). “A existência existe” é uma formulação daquilo que é auto-evidente. “Auto-evidente” significa: disponível à apreensão directa.
Todo o conhecimento, seja perceptual ou intelectual, é o conhecimento de algo, algo que existe. Qualquer declaração de conhecimento é uma declaração de saber que algo é alguma coisa, de que existe alguma circunstância.
De acordo com tal facto, “A existência existe” não é uma verdade derivativa ou restricta, mas sim um axioma: uma verdade fundamental, primária e auto-evidente implicitamente contida em todo o conhecimento.
Os axiomas não podem ser provados. Isto não é uma fraqueza nem uma subjectividade inerente. Os axiomas são melhores do que provados: são auto-evidentes. “A existência existe” não precisa de ser provado; é directamente percepcionado. Basta abrirem os olhos, e saberão tudo o que há a saber sobre a existência da realidade. Há uma quantidade ilimitada de informação a aprender sobre aquilo que existe, as formas e variedades e aspectos dos existentes, mas mais nada a aprender sobre o facto de que a existência existe, nada para além do que está contido na vossa primeira percepção logo no início da vossa vida: “há algo”.
Alguns exigem que os axiomas sejam provados. Mas tal exigência falha em entender o que são provas. “Prova” é um conceito avançado, não um conceito primário. Depende do conceito antecedente de “existência”, e de um vasto corpo de outros conhecimentos. Crianças novas e selvagens não possuem um conceito de prova.
Todas as ideias têm de ser validadas. Mas “validação” é uma ideia mais abrangente do que “prova”. Existem, no geral, duas formas de validação: por prova e por percepção directa.
A prova é um processo de inferência – inferência deductiva ou inductiva. Em ambas as formas, a inferência é um processo de avançar no pensamento a partir de algo previamente conhecido para algo logicamente relacionado com isso. Uma inferência é feita a partir de algo, não a partir do nada. Consequentemente, tem de haver algum ponto de partida. O ponto de partida de qualquer sequência válida de provas, seja o quão longa for, é a informação dada pela percepção directa – isto é, o auto-evidente.
Se vocês virem pegadas na areia e concluírem que alguém andou por lá, essa conclusão é atingida por inferência. Mas o próprio acto de ver as pegadas constitui em si uma percepção directa, não inferencial; a presença daquelas formas na areia é-vos auto-evidente.
Tal como Aristóteles observou, é ilógico acreditar que absolutamente tudo tem de ser provado. A prova é indispensável quando a observação directa não está disponível. Mas a prova não é necessária nem possível no que toca à informação básica na qual todo o conhecimento se baseia: os dados perceptuais. Por muito importante que as provas sejam, elas são o meio secundário de validar ideias, não o primário. O meio primário é a percepção directa.
Auto-evidências, factos directamente percepcionados, são aquilo que torna as provas possíveis. Para reiterar este ponto de uma maneira extrema: a prova é aquilo a que recorremos quando algo não é auto-evidente.
E perguntemo-nos: porque é que as provas provam? O que é que as faz “funcionar”? Uma prova estabelece uma ideia ao vinculá-la ao que é directamente percepcionado, ao auto-evidente. Por isso, exigir uma prova daquilo que é auto-evidente é uma reversão absurda.
Muitos filósofos rejeitam a ideia de auto-evidência enquanto arbitrária ou subjectiva. Já que eu irei defender que a consciência e muitos factos sobre a consciência são auto-evidentes, é importante estabelecer firmemente a ideia de auto-evidência desde o início.
Apesar de muitas coisas terem sido falsamente declaradas como auto-evidentes, em todos esses casos, o erro está relacionado com aquilo que se considerou auto-evidente, e não com a auto-evidência em si. Mais uma vez, “auto-evidente” significa: disponível à apreensão directa. O auto-evidente é aquilo que se mostra evidente ao ser directamente observado, em vez de ser inferido a partir de outra coisa.
“Auto-evidente” não é um sinónimo de “óbvio”. Para alguém que tenha aprendido aritmética, é óbvio que dois mais dois são quatro, mas essa verdade não é auto-evidente; é inferida por um processo de comparação e contagem. Mas o facto de que a página que vocês estão a ler neste preciso momento existe não é uma inferência: é auto-evidente.
Os dados da percepção sensorial são auto-evidentes, mas a interpretação conceptual desses dados, e as inferências obtidas a partir deles, não são auto-evidentes. Elas têm de ser validadas ao reduzi-las de volta ao que é auto-evidente.
Os oponentes da auto-evidência vão dizer-vos que na era medieval era auto-evidente que a Terra era plana, mas nós hoje sabemos que ela é redonda. Mas os medievais não eram capazes de percepcionar a forma do planeta. Aquilo que é fornecido na percepção é uma porção muito pequena da superfície da Terra, e tudo o que alguém pode dizer sobre o que é fornecido na percepção é que a curvatura é inferior ao que o olho consegue detectar. A escala do oceano ou da pradaria que uma pessoa consegue ver é de facto plana – de acordo com os parâmetros de precisão fornecidos pela percepção visual. Assumir uma posição sobre qual é a forma da Terra para além do que a percepção consegue revelar é, ou fazer uma inferência, ou adivinhar às cegas. Só os astronautas no Espaço é que são capazes de ver o suficiente do Mundo para terem uma experiência perceptual da sua forma, e é claro que eles o veem como redondo.
Outro exemplo típico é refutado com a mesma facilidade: a revolução da Terra em torno do Sol. Não é auto-evidente que o Sol se desloca à volta da Terra, nem que a Terra se desloca à volta do Sol. O que é auto-evidente é que existe um movimento relativo entre o Sol e a Terra. Não é auto-evidente qual ponto de referência, o da Terra ou o do Sol, é que é o apropriado para usar na Ciência.
Tais alegados contraexemplos da auto-evidência não têm nada em comum com “A existência existe”, que constata um facto auto-evidente, um facto que nós confrontamos em cada momento de vigilância, desde os nossos primeiros actos de percepção até aos últimos.
Apesar de a veracidade de “A existência existe” não precisar de ser provada, é necessário provar que, dentro das classes de verdades, ela possui um estatuto especial enquanto axioma. Os axiomas são uma subclasse especial de verdades auto-evidentes. São auto-evidências que expressam um facto primário que está na base de todo o conhecimento. Só umas quantas verdades auto-evidentes é que são axiomas. Uma declaração como “A relva à minha frente é verde”, apesar de ser auto-evidente, não é fundamental nem está contida em todas as declarações de conhecimento subsequentes.
O estatuto axiomático de “A existência existe” já foi demonstrado ao mostrar que é um primário irredutível, pressuposto por, e implicitamente contido em todo o conhecimento. Mas também há um teste específico de axiomaticidade. Como todo o conhecimento depende de um axioma, este último é cognitivamente inescapável. Tal como Ayn Rand observa, um axioma é “uma declaração necessariamente contida em todas as outras, quer um orador específico escolha identificá-la ou não.” [Atlas Shrugged, 1040] Não é sequer possível pensar sem se assumir implicitamente a verdade de um axioma genuíno. Um axioma é absolutamente fundamental. Até mesmo a tentativa de o negar conta implicitamente com a sua veracidade.
Por exemplo, na Grécia Antiga, um Sofista anunciou: “Nada existe.” Mas se nada existe, então esta declaração não existe. Ele tem de assumir que esta declaração existe no próprio acto de negar que algo existe. E ele tem de assumir a existência de muito mais: dele mesmo, da sua compreensão do significado das palavras que proferiu, e de todo o processo de aprendizagem que foi necessário desde a sua infância até chegar ao dia em que ele pôde fazer figura de idiota ao proferir aquela declaração auto-refutatória.
Este teste de axiomaticidade chama-se “re-afirmação pela negação,” [Ver, por exemplo, Blanshard, 1939, Vol. 2, 252.] porque o orador tem de re-afirmar implicitamente o axioma na sua tentativa de negá-lo. “Um axioma é uma proposição que derrota os seus oponentes pelo facto de que eles têm de aceitá-lo e usá-lo no processo de qualquer tentativa de o negar.” [Atlas Shrugged, 1040]
Mais uma vez, a “re-afirmação pela negação” não prova que um axioma é verdadeiro: os axiomas são auto-evidências perceptuais, e não algo provado por qualquer outra coisa. A “re-afirmação pela negação” apenas testa se uma dada declaração, já previamente reconhecida como verdadeira, está implicitamente contida em todas as outras, e terá portanto o estatuto, dentro das classes de verdades, de um axioma. (Por contraste, apesar de um pedaço de relva ser auto-evidentemente verde, dizer “Esta relva não é verde” não re-afirma de maneira nenhuma a sua verdura.)
Temos de ser bastante claros quanto ao significado de “A existência existe”. Não significa que existe algum estado ou propriedade de coisas que constitui a sua existência. Não diz que “As coisas têm a propriedade de existirem” – não existe tal propriedade. Diz que há existentes – coisas que existem. Postular uma propriedade de “existir” para caracterizar existentes é insinuar que há não-existentes que não possuem esta propriedade. Mas não há não-existentes: o que existe, existe; o que não existe, não existe. Tal como diz Leonard Peikoff, “A ‘existência’ aqui é usada como um nome colectivo, denotando o somatório de todos os existentes.” [Objectivism: The Philosophy of Ayn Rand, 4] Dizer que “A existência existe” é equivalente a dizer que “Tudo o que existe, existe.”
Na verdade, “A existência existe” simplesmente coloca na forma de uma proposição o conceito axiomático “existência”. Dizer “Tudo o que existe, existe” é simplesmente compreender o conceito “existe”. Ou, equivalentemente, é ter apreendido o conceito “tudo.”
Tal como não é possível tornar a existência numa propriedade dos existentes, também não é possível analisar o facto da existência de nenhuma maneira. É um facto primário irredutível. É possível analisar um facto não-axiomático ao nível dos seus componentes ou aspectos. Mas esse processo pressupõe que esses componentes ou aspectos existem. É possível analisar um relâmpago enquanto descargas eléctricas, ou plantas e animais enquanto células, mas então as descargas eléctricas ou as células teriam de existir. Iríamos analisar a existência enquanto o quê? Aquilo que não existe?
Logo, a tolice pretensiosa e arrogante daqueles filósofos que tentam perguntar: “Porque é que existe algo em vez de nada?” Eu digo-lhes “tentem perguntar,” porque não existe aqui nenhuma pergunta genuína com conteúdo válido, apenas um conjunto de palavras na forma linguística de uma pergunta. Qualquer resposta que alguém tentasse dar a esta pseudo-pergunta – chamemos-lhe o factor X – o factor X teria de existir, deixando a pseudo-pergunta sem resposta possível.
Uma forma mais simples do mesmo erro pode ser encontrada na pseudo-pergunta do teísta: “O que é que causou o Universo?” Aqui, novamente, não existe uma pergunta genuína, uma vez que perguntar por uma causa é perguntar por uma causa que exista, e o Universo é: tudo o que existe. Quando o teísta usa esta pseudo-pergunta para “provar” a existência de um Deus, não lhe ocorre que, pela sua própria lógica, ele deveria então perguntar: “O que causou Deus?”
Podemos perguntar por uma explicação causal de qualquer coisa em particular dentro da existência, mas não faz qualquer sentido perguntar por uma causa da própria existência.
A existência, o Universo, é um primário auto-suficiente. Não existe nada que cause haver algo em vez de nada; não existe nada que anteceda cronologicamente a existência, ou que exista para além da existência, ou que exista fora da existência. A existência existe, e só a existência é que existe. O que não existe, não existe.
Nem pode haver uma origem do Universo ou um fim do Universo. Configurações particulares de elementos dentro do Universo – configurações que nos constituem a nós, aos planetas, e até às galáxias – podem aparecer e desaparecer. Mas o Universo em si – a inteireza daquilo que existe – não apareceu (a partir do quê?) nem pode desaparecer. Não houve nenhuma época em que não existia nada; o Universo não existe no tempo ou no espaço; o tempo e o espaço são relações entre coisas dentro do Universo.
Por outras palavras, a existência existe. Ponto final.