Portugal esteve sob um regime fechado e ditatorial durante cerca de meio século.
Hoje, só posso conhecer esses tempos através dos relatos históricos e das histórias contadas pelos mais velhos. O meu pai fala frequentemente da “enorme anarquia” que se seguiu, das “salas de aula ocupadas por soldados barbudos” e dos “jovens a consumir drogas”. Ele recorda como a sua geração, nascida nos anos 60, foi devastada pelas drogas, com muitos a perderem a vida ou a verem-na irreparavelmente destruída.
Com alguma pesquisa, constatei que o meu pai tinha razão. Após o 25 de Abril, a liberdade recém-conquistada trouxe consigo uma onda de optimismo, amor livre e idealismo, características dos anos 70. Foi nesse período que o consumo de cannabis começou a aumentar em Portugal. A guerra colonial e o regresso dos militares das colónias africanas também contribuíram para a maior disponibilidade de drogas no país.
Nos anos 70, Portugal enfrentava um problema crescente com as drogas, o que levou à implementação de várias medidas para tentar conter esse flagelo. Foram experimentadas várias abordagens de reabilitação e reintegração social, mas o problema persistiu. Na década de 90, estimava-se que havia cerca de 100 mil utilizadores de heroína num país com apenas 10 milhões de habitantes. Durante 20 anos, cerca de metade dos casos de HIV em Portugal resultaram do uso partilhado de seringas entre toxicodependentes.
Embora pareça distante da realidade atual, lembro-me bem da minha infância em Sintra, onde frequentemente me deparava com embalagens de seringas abandonadas no chão. Os meus pais explicavam-me o que era a toxicodependência, um flagelo que ainda marcava a sociedade portuguesa nos anos 90.
Nessa época, o consumo de drogas era um crime, punido com multas e, em caso de reincidência, até com prisão. Contudo, nada parecia mudar. O governo português percebeu que estava a gastar demasiado dinheiro a penalizar o problema sem obter qualquer resultado significativo. Foi então que decidiu formar uma equipa multidisciplinar para desenvolver um plano integrado que pudesse oferecer uma solução mais eficaz. Assim, Portugal avançou para a descriminalização do consumo de drogas, permitindo a posse de até 10 doses de qualquer substância ilícita.
É fundamental destacar que a descriminalização em Portugal não é sinónimo de liberalização ou legalização. O consumo de drogas continua a ser uma infração, mas deixou de ser tratado como um crime. Em vez de serem julgados criminalmente, os consumidores são encaminhados para comissões de dissuasão e profissionais de saúde, sob a alçada do Ministério da Saúde. A diferença reside no tratamento: em vez de serem vistos como criminosos, os consumidores são tratados como pacientes, o que se revelou crucial para o sucesso da lei portuguesa.
Quando alguém é apanhado a consumir drogas, é encaminhado para uma comissão de saúde que avalia a sua dependência. O consumo recreativo geralmente não requer mais acompanhamento, enquanto os dependentes recebem apoio médico através de organizações não governamentais, com centros espalhados por todo o país, muitas vezes em zonas de elevado consumo. Para aqueles que continuam a consumir drogas injetáveis, são disponibilizadas seringas esterilizadas, o que levou a uma redução significativa na transmissão do HIV, poupando dinheiro público e resolvendo um problema de saúde pública.
Desde a implementação da lei de descriminalização em 2001, os resultados têm sido notáveis. Até 2017, as mortes por overdose diminuíram de 369 em 1999 para 30 em 2016, os novos casos de HIV relacionados com o consumo de drogas caíram de 907 para 18, e o número de prisões relacionadas com substâncias reduziu de 3.863 para 1.140.
O modelo português tem sido elogiado internacionalmente e serviu de inspiração para outros países, especialmente na América do Norte. No entanto, a aplicação da descriminalização noutros contextos nem sempre foi bem-sucedida. No estado de Oregon, nos EUA, onde foi aprovada uma das leis mais liberais em relação às drogas, o princípio fundamental de tratar os consumidores como pacientes foi negligenciado. A falta de infraestruturas de apoio e a implementação inadequada contribuíram para o fracasso da lei, deixando os consumidores sem o suporte necessário.
Na Colúmbia Britânica, Canadá, a inspiração no modelo português foi mais próxima, compreendendo que descriminalização não significa liberalização. Contudo, ainda enfrentam desafios, como o consumo em espaços públicos, algo que também ocorre em Lisboa. A pobreza, exclusão social e crise habitacional empurraram muitos consumidores para as ruas. Desde 2019, a criação de salas de consumo supervisionado tem ajudado a mitigar essas situações, oferecendo materiais esterilizados, refeições e encaminhamentos para serviços de saúde. O próximo passo será expandir estas infraestruturas para além das grandes cidades.
O mais importante a retirar da experiência portuguesa é que a descriminalização das drogas não pode ser vista como uma solução isolada. Deve fazer parte de um sistema integrado que inclui apoio contínuo e adaptação constante às necessidades das pessoas. O sucesso de Portugal mostra que tratar os consumidores de drogas com dignidade e respeito é o caminho para resultados reais e duradouros.
Cláudia Nunes – Presidente da LOLA Portugal